Notas para jovens psicólog@s
- valerialisondo
- 31 de jan. de 2022
- 7 min de leitura
O acontecimento da pandemia não deixa de unir o que se alcança com um binóculo e com um microscópio. Simultaneamente. De longe, enxergamos. E vemos de perto. A olho nu. Inspirada no que o meu corpo-mente experimentou nos últimos tempos, tive vontade de apontar notas para jovens psicólog@as.
1) O nosso corpo é uma mente disponível
“ ... há uma vivência sensível na qual a porosidade própria do corpo humano recria, a cada momento, a atmosfera de uma existência”... (FIGUEIREDO, L.C; COELHO JR, N. 2008. p.80)
É comum que nas produções discursivas do mundo “psi” com as quais tenho tido familiaridade, se aponte como superado o paradigma cartesiano que separa a instância do corpo da instância da mente. No entanto, em que medida apreendemos de forma radical tal premissa?
Um atendimento se agenda não apenas com a compatibilidade de horários entre o profissional e seu cliente. Um atendimento se agenda auscultando a disponibilidade de um corpo para colocar-se à disposição do que ocorre quando trabalha.
Falo por mim. A minha agenda mudou não apenas em função das demandas dos clientes. Mas também por um contato mais íntimo de uma escuta de músculos e câimbras: das pausas singulares que cada caso me pedia.
Importante esclarecer: não defendo um “ setting errante” [1]. Interrogo em que medida a variável de nosso corpo-mente é contemplada na presença que ofertamos. Será que efetivamente ouvimos os seus limites? Falo de como é fácil encampar em uma gramática de critérios pragmáticos e supostamente produtivos. É claro: precisamos trabalhar. Mas não é disso que temos condições quando submersos em uma lógica de excessos: quando somos uma mente esgotada, porque corpo esgotado (e vice-versa).
2) O nosso corpo é Enigma Brasil

“ Marca Registrada” obra de Letícia Parente (1975)[2]
A obra “ Marca Registrada” da artista baiana Letícia Parente revela a tarefa que nos diz respeito: do que se trata a experiência de partilhar a realidade do contexto brasileiro? O país está inscrito em nossa pele, na sua violência ancestral, na sua obscena desigualdade...
Considerar o Brasil um enigma é estabelecer um compromisso ético de inquietação e abertura. É conceber que a nossa formação se fará não apenas pelas leituras do campo “ psi”, mas também pelos aportes de outras áreas. Que todo esforço para essa articulação transversal é decisiva para um corpo sensível que escuta outro. Para um corpo atento às marcas que encarna e carrega.
Considerar o Brasil um enigma é tatear a textura de seus imbróglios. Por exemplo, pensemos nos aportes da psicanálise ao sublinhar a dimensão estruturante que a instauração da lei opera na vida psíquica. Agora, façamos um esforço de articular o fenômeno à descrição que um de nossos críticos literários faz de nosso contexto:
“Resumo do Brasil: a lei não faz sentido na formação ancestral brasileira, e, sob pena de continuar a não fazê-lo ad aeternum, não estabelece e estabiliza o simbólico - é regra ambivalente e arbitrária oscilando insidiosamente entre a violência e a retórica”. (WISNIK. J.M. 2002. p. 185)
Ora, pesquisar a especificidade de um pacto civilizatório que talvez não mereça ser denominado como tal é fundamental para nossa atuação. Seja onde for. O registro do arbítrio não é o registro da lei. Ocorre que justamente um dos ingredientes do Enigma-Brasil seja a operação que borra essas fronteiras como sustenta o texto de Wisnik acima mencionado.
O acontecimento da pandemia no Brasil e sua trágica resposta mortífera não deixa de ser um apelo que também clama por isto: para que a “ Marca Registrada”- Brasil- inscrita no nosso corpo se faça também pensamento e produção de sentidos.
Acauam Oliveira [3] em artigo ao Nexo cita o breve ensaio de Paul Preciado “ Aprender com o Vírus” para oferecer a perspectiva de que, em grande medida, o vírus mimetiza o que somos enquanto sociedade. Nesse sentido, não emerge algo novo. Faz-se ocasião para acessar escancaradamente os ingredientes que compõe um dado tecido social. Portanto, pensar o Brasil nesse momento não deixa de ser exercício incontornável para nós – sejamos jovens, sejamos madur@s psicológ@s.
No artigo, Acauam Oliveira pensa o sucesso da radicalização da política de morte no país de forma indissociável à sua matriz escravista... “ que nos educou enquanto sociedade para a indiferença total diante da dor do outro- além, é claro, do sadismo próprio às classes proprietárias. É sempre bom lembrar que o fascismo brasileiro tem uma matriz colonial que se mantém a partir da produção contínua e crescente de vidas precárias marcadas para a morte, por conta da tecnologia do racismo estrutural forjada a partir da escravidão. Ou seja, Bolsonaro só fez reduplicar, de forma despudorada, a vocação genocida do país, confirmado a tese de que o vírus nada mais é do que expressão condensada daquilo que somos. No caso, uma máquina de extermínio da população preta e pobre do país”.
3) A matriz colonial no corpo que somos
Me formei como psicóloga na PUC-SP em 2006 e, lembro, surpresa, muitos anos depois, quando tomei contato com a referência de Frantz Fanon [4] : “ como nunca tinham me apresentado esse texto antes na minha graduação ? ”. Neusa Santos Souza, Lélia Gonzalez e outras referências foram muito tardiamente conhecidas por mim [5]. Digo isso para frisar que na minha geração e no contexto absolutamente privilegiado (de uma universidade tida como crítica, diga-se de passagem) da minha graduação há a marca de uma lacuna reveladora: a ausência de um repertório para nomear e pensar de forma mais sofisticada os efeitos que a nossa matriz colonial produz. E de como isto é absolutamente inerente à matéria mesma daquilo que diz respeito ao mundo “psi”: o sofrimento psíquico, as suas dimensões sócio-políticas, a travessia trilhada para nos constituirmos como sujeitos, a experiência de sermos quem somos em um Brasil tão abissalmente desigual.
Digo isso, porque me parece que jovens psicólog@s têm o privilégio de acessar neste momento um quadro bem distinto do que o descrito anteriormente. E porque esse é um trabalho a ser desdobrado e enriquecido de muitas formas. Não se trata apenas de estudar e apreender conceitos. Trata-se de saber-se um corpo que é atravessado pelos efeitos da tecnologia do racismo estrutural e da história de nossa matriz colonial.
Ana C. C. Gebrin na sua tese de doutorado: “ Psicanálise no Front: a posição do analista e as marcas do trauma na clínica com migrantes” atravessa essas questões. Vale destacar o seu esforço por trazer à baila a noção de branquitude associada às implicações clínicas de assim situar-se:
Branquitude é a dimensão racializada do meu próprio corpo nesse tempo histórico marcado pela violência contra corpos não-brancos que tanto atravessa a minha própria singularidade no processo de subjetivação quanto à relação com o outro. Trata-se, portanto, também de minha perspectiva traumática das marcas de uma violência que estruturou tanto os privilégios como meu próprio processo de subjetivação. Desse modo, o inconsciente colonial é pensado como o transtraumático na relação entre analista e paciente nesses contextos. Marcas do enigma traumático de uma violência histórica impressa na transgeracionalidade dos processos de subjetivação. (GEBRIN, A.C.C. 2018. p.208)
É sempre oportuno lembrar que a literatura tem o atributo fecundo de antecipar muito do que depois foi mapeado e descrito pela psicanálise por outros caminhos, com outros fins. E que mergulhar na literatura brasileira pode ser uma via de encontrar contornos e textura para os elementos que a autora sugere: as marcas transgeracionais de uma violência histórica que pulsam na relação transferencial. Um inconsciente colonial que nos habita.
Compartilho o farol luminoso que a obra: “ O Avesso da Pele” de Jeferson Tenório nos oferece nesta direção:
“ Enquanto isso, você observa os terapeutas. E pensou que eles não sabiam nada de vocês. Não conheciam o tumulto vital de vocês. Eles eram brancos. Vieram de uma classe média. E tinham uma visão limitada do mundo. Não perceberam o que estava acontecendo ali. Eles não faziam a mínima ideia de que a metade de seus problemas estava contida na cor da sua pele, você pensou. Não diretamente, mas lá no fundo. Você sabia que tudo isso era mais complexo do que eles imaginavam. A psicanálise tinha cor e ela era branca, você pensou. E definitivamente havia coisas que escapavam a Freud. Você só queria ser honesto consigo, porque nunca sabemos se somos suficientemente bons ou quando somos incapazes de fazer algo, não pela nossa cor, mas porque simplesmente não conseguimos fazer, você pensava” (TENÓRIO, J. 2020.p. 85)
Por fim, fica o desejo que possamos ser corpos inventivos e investidos de licença para responder às interpelações que nos afetam. À nossa maneira.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BLEGER, J. (1967) Psicanálise do enquadramento psicanalítico. In: Simbiose e ambigüidade. Trad.Maria Luiza Borges. Rio de Janeiro: Francisco Alves Ed. p.311-328, 1985.
FIGUEIREDO, L. C.; COELHO JUNIOR, N. E. Ética e Técnica em Psicanálise. São Paulo: Escuta, 2008.
GEBRIM, A.C.C. Psicanálise no Front: a posição do analista e as marcas do trauma na clínica com migrantes. 2018. Tese (Doutorado em Psicologia Clínica) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018.
TENÓRIO, J. O Avesso da Pele. São Paulo: Cia das Letras, 2020.
WISNIK, José Miguel. O Famigerado. Scripta. Belo Horizonte: PUC Minas, v.5, n.10, p. 177- 198, 1º sem., 2002.
[1] - É nevrálgico o cuidado com a dimensão do manejo sensível da estabilidade de um enquadre – setting. A obra: “ Simbiose a Ambiguidade “ (1967) de José Bleger é uma das luminosas referências para pensar o tema. [2] - Marca Registrada - Letícia Parente - arteref [3] - O bolsonarismo como paródia (mortal) da pandemia | Nexo Jornal [4] - “ Pele Negra e Máscaras Brancas” (FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: Ed. UFBA, 2008). [5] - Grada Kilomba cuja obra “ Memórias da Plantação” foi publicada recentemente no Brasil inclusive se interroga no prefácio sobre o fato de que o livro lançado em 2008 no Festival internacional de Literatura em Berlim tardou 10 anos para chegar ao Brasil e à Portugal traduzidos ao português. (KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Editora Cobogó, 2019).
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